
Até a própria Disney desistiu de apostar nesse tipo de animação.
E realmente seria apenas mais uma saudosa extinção se não existissem os Studios Ghibli, uma companhia de animação japonesa que tem hoje a magia encantadora de fábrica de sonhos da Disney nos seus tempos áureos e é talvez o único pedestal da pureza primordial do género… é de ter em conta que o seu co-fundador Hayao Miyazaki é um dos cineastas mais respeitados do mundo, sendo o recipiente do prémio carreira da nova edição do Festival de Veneza, e venerado como uma entidade divina por todos aqueles que trabalham na área.
Depois do Óscarizado Sen to Chihiro no Kamikakushi – também conhecido como Spirited Away e A Viagem de Chihiro – Miyazaki muda o panorama predominantemente oriental da sua já imortal fábula para uma ambiência mais europeia, não fosse esta história uma adaptação de um conhecido conto infantil de Diana Wynne Jones.
No meio de uma estouvada e incessante guerra uma rapariga de 18 anos chamada Sophie continua a arte da manufactura de chapéus, a única recordação que resta do seu falecido pai. A irmã e a mãe insistem que comece a pensar em si própria mas ela deixa que o trabalho a consuma por completo. Pelo menos até o dia em que conhece Howl, um jovem feiticeiro que a ajuda e involuntariamente a arrasta para um perigoso mundo de magia que anteriormente desconhecia.
É perseguida pela Bruxa do Nada, que lhe coloca um feitiço terrível, transformando-a numa velha enrugada. Sophie tem então de encontrar e pedir algum tipo de auxílio a Howl, que vive um imundo e assustador castelo andante.
Hayao Miyazaki é acima de tudo um contador de histórias, um dos mais genuínos e encantadores contadores de histórias que ainda perduram no cinema actual. A sensibilidade que demonstra é a de um cavaleiro protegido por artes mágicas perdidas que tem como função salvar o mundo da pestilência e do desgosto. Em toda a extensão da sua gloriosa carreira, o realizador japonês, com os seus filmes, devolveu ao mundo a capacidade de sonhar e ser plenamente arrebatado por uma história simples e tocante, como se ainda estivéssemos a viver a infância, época recheada de alegria e surpresas constantes.
Em Howl’s Moving Castle Miyazaki promove novamente o sonho e a fantasia enquanto forças supremas da imaginação e criatividade humanas, criando logo à partida um universo narrativo novo e fresco, carregado de desejos e possibilidades. Sente-se aqui uma forte alusão à régia velha Europa do século XVIII, na arquitectura, na monarquia subjacente, nas ruas iluminadas por pequenas lojas e cafés.
Com a discrepância denunciante de nos encontrarmos num mundo onde feitiços espreitam soturnamente de cada canto e surgem quando são menos esperados. É esta uma das mais proféticas habilidades de Miyazaki, a de fundir dois mundos distintos – a realidade e a fantasia – e edificar algo profundamente épico na maneira como expõe os vários estratos da dimensão da alma humana.
E essa alma reside em todas as suas personagens, quer elas sejam bruxas malévolas, chamas falantes ou espantalhos erráticos. Aqui o espírito da lenda é encarnado por uma rapariga que tem de se deparar com a sua própria identidade de forma extremamente brusca e dolorosa, perdendo abruptamente a jovialidade e vislumbrando em si mesma um futuro que lhe foi furtado. Mas é nesta contingente situação que Sophie acaba por se aperceber do seu propósito e apaixonar-se perdidamente por um rapaz também ele perturbado e vítima de uma maldição desconhecida, à qual ele não conseguirá resistir durante muito tempo e que o acabará por levar à perdição da morte.
As diversas transfigurações de Sophie e Howl são sinais exteriores de sepultadas convulsões da psique humana, tornando-os mais próximos a cada momento que passa e espelhando um no outro as reflexões conturbadas deles próprios. A habitar este mundo estão também diversas e valorosas personagens secundárias que em muito contribuem para uma proliferação mais evidente da fantasia proposta.
Um deles é o órfão Markl, aprendiz solitário de Howl que acaba por encontrar muito mais que uma amiga em Sophie. Outro é Calcifer, o demónio do fogo que alimenta todo o castelo, hilariante na sua apresentação e uma misteriosa adenda ao vulto enigmático do feiticeiro.
Howl’s Moving Castle ou Hauru no ugoku shiro, provavelmente mais próximo de Kiki’s Delivery Service do que de Princess Mononoke, é uma espécie de regresso às origens de Miyazaki, deixando por alguns momentos uma diegese mais soturna e adulta, voltando a emergir o livre deslumbramento de uma infância esquecida. Por algumas horas, Miyazaki lembra-nos o que é ser criança e de como o mundo, tão simples e descortinado, se abre tão facilmente perante os olhos castos da inocência perdida.
Na sua profunda obsessão por tudo o que ande nos céus, Miyazaki crê que voar é a solução. Não poderia estar mais correcto. 8/10
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